terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Do estômago, nenhuma borboleta

- I -

A consciência ou o apego exagerado ao que chamo de eu mesma, minha individualidade, sempre me salvou da loucura total patológica. Eu tinha medo de viver sem poesia. Meu lirismo narrava minha biografia. Mas então eu vivi muitas vidas numa vida. E numa dessas muitas vidas eu me diluí.

Num misto de sensações liquidificantes eu pensava estar sendo bebida, sorvida, esvaída, esvaecida, esvaziada. Quando fui triturada achei se tratar de liquidificação, mas na verdade eu havia evaporado, estava “sumida” como me diziam meus antigos convivas.
Eu não era nada sólida. Talvez pastosa. Nunca haviam me chamado de volúvel. E duvidei que eu conseguisse um dia ver voar de mim elementos constituintes das minhas tragédias pessoais, ou mesmo ser volátil.

Todas as lendas escuras escusas permitiram que eu me ocultasse. Já era indiscutível. Eu estava realmente desaparecida, sumida, fugida ou tudo isso junto. As pessoas precisavam fazer muito esforço pra me achar. E quando elas me encontravam eu tinha que fingir que eu era eu e que nada daquilo era realmente grave.

Graças ao hábito de trazer para meu convívio diferentes pessoas assim que as pessoas próximas atingiam um grau alto de tédio terno, eu pude me reinventar várias vezes.
Passei a me expor para um grupo de pessoas com vivências e percepções distintas do que eu estava acostumada. Diga-se de passagem que para toda pessoa perspicaz, analítica e que tenha um bom hábito de leitura (seja da palavra escrita, de filmes, do mundo) não existe nada de novo. As pessoas deslumbráveis são aquelas que não conseguem fazer a conexão entre seu objeto de deslumbramento e referências anteriores presentes em sua própria experiência de vida. Ou aquelas que mesmo fazendo todas essas conexões se entregam a uma dimensão, intensidade, natureza diversa daquilo que já havia ouvido falar, mas que nunca esteve em sua frente. Diante disso não sei se os não-deslumbráveis são uns hipócritas de si mesmos ou se os deslumbráveis são uns hedonistas compulsivos. Em qualquer caso a estabilidade da classificação se dá de acordo com o fato de serem eles incorrigíveis ou não.

Nunca havia me julgado uma pessoa irritante. Mas acho que eu não havia olhado com o devido rigor pra esse espelho lúcido. A ferocidade das minhas palavras me proporcionava tanto prazer oral (mais tarde voltarei à questão da minha fixação oral neo-freudiana) que eu não poderia sequer fazer um exame de consciência para refletir sobre as conseqüências do que eu dizia.

Talvez se eu falasse de mim na terceira pessoa a la Salvador Dali eu pudesse me distanciar do eu narrador que insistia em imprimir uma versão pessoal de mim mesma em primeiro plano para mim e em segundo e ultimo já q era inevitável, exprimi-la para os outros.

De tudo é certo q nunca neguei nem odiei nem tive nenhuma atitude negativa diante da complexidade de meu ser. Achava mesmo q decifrar-me era tarefa pra vida inteira e como eu estaria o tempo todo comigo mesma, parecia-me inclusive uma forte justificativa para decifrar o próprio sentido da existência e de todos os mistérios do universo.

Depois que o conheci perdi um pouco da minha espontaneidade. Era raro encontrar alguém que já havia descoberto coisas significativas sobre si mesmo através de um método semelhante ao meu. Contudo, avalio que o meu método era muito mais divertido que o dele. E talvez o dele mais preciso que o meu.

A certa altura da intensa convivência eu já o sentia como invasor. Sinais evidentes: deixar roupas e outros pertences espalhados pela casa; abrir a geladeira e não se sentir constrangido ao consumir algo sem prévia notificação; usar meu computador pessoal por horas, inclusive para bater papo; chegar sem avisar a qualquer hora do dia ou da noite; portar uma cópia da chave da minha casa.

Mas a invasão não era só do espaço físico. Ele estava perito em fazer análises sobre meu comportamento – o que me assustava muito. Aliás, toda a história desde o começo foi assustadora. Eu estava mesmo precisando tirar férias. Os fatos estavam me atropelando.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi Isabela
Gostei muito desse seu método terapêutico de ser o terapeuta e o paciente de si mesma.

Mas o que adorei mesmo foi a sua sacação sobre os deslumbrados.
Eu sou um rabugento assumido, e vejo o deslumbramento como uma atitude simplória diante da vida.
E essa relação que você estabeleceu de superficialidade entre o sujeito deslumbrado e o objeto deslumbrante é perfeita.
Eu já era teu fâ no MAR, serei aqui agora tb.
Ademir